sexta-feira, 19 de dezembro de 2014



Ouvi uma vez certa artista falando sobre a necessidade de se amar enquanto temos as pessoas perto de nós. Ela contava sobre o pai, um senhor já de idade, que, antes de falecer, sempre pedia em tom de súplica: "me liga mais vezes fia, pra falar de você, do seu dia, contar uma gloriazinha..." Do discurso da moça  não guardei mais nada. O que entrou nos meus ouvidos e martelou em minha cabeça e não me largou mais foi a frase do senhor. Não o conheci, mas bastou a frase para imaginar um velhinho sempre com aquelas palavrinhas em tom de brincadeira que pegam a gente desprevenidos e causam uma verdadeira reviravolta.
Pensei no que seriam as gloriazinhas do meu dia e gostei de chamá-las assim. Gloriazinhas passam despercebidas às vezes, são coisas miúdas do dia, mas não deixam de ser glórias. Gloriazinhas nos fazem sorrir sem que a gente se dê conta. Minha última gloriazinha foi um abraço inesperado de um menininho que de pequeno tinha só o tamanho e, por causa do tamanho, abraçou só minhas pernas, mas conseguiu me tocar lá no coração. 
As gloriazinhas estão por aí aos montes, mas a gente só se concentra nas grandes glórias. Um diploma digno de moldura para ser pendurado à parede, um carro que possa causar inveja, uma casa que evidencie o tamanho do nosso sucesso... e por aí vai. Mas as gloriazinhas são mais democráticas, elas acontecem na vida do mais deserdado dos seres. E só por elas já vale a pena ter nascido.

Jéssica Alves

Entre nós quase toda a gente pensa que literatura é arrevezamento, ginástica verbal, ilusionismo imaginoso, hipérbole sublime. E devido a isso mesmo há no Brasil muitos cavalheiros que falam mas poucos que dizem. Falam até debaixo d'água. Não dizem coisa nenhuma. De tal forma que hoje em dia o conceito de literatura é até pejorativo.

Alcântara Machado - A eloquência e o brasileiro.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014



As lembranças da infância brincam de ciranda em minha mente e, de um jeito fácil, me puxam pra roda também. Rodopio num sentido e no outro. Fico leve outra vez, como criança. Sem preocupações, ressentimentos, mágoas. Todas essas coisas que pesam na gente. O meu riso sai mais fácil, sem precisar desviar desses in-cômodos. Sim, porque esses pesares mais parecem cômodos em nossa mente. Tomam conta do lugar por tanto tempo que começam a fazer parte da decoração. A nossa necessidade de mudança está nisso: não ansiamos apenas o novo. Precisamos, por uns dias, daquela sensação da casa se esvaziando, até ficar pronta para nos receber outra vez.

Jéssica Alves

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014



Quero mergulhar num rio de coisas minhas
Deixar de banhar-me às margens de outros
Seguir o meu próprio fluxo e viver fluindo
Jorrar de mim em terras secas
Fazer pingar cada gota do meu ser
em forma de poesia
Desagarrar da superfície
moldá-la em nuvem e chover em versos

Jéssica Alves

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira

terça-feira, 9 de dezembro de 2014



Aos meus olhos, você está inacabado. A cada dia enxergo algo novo em você e eu espero que você não se conclua nunca. Quando você vem com suas novidades, fico impulsionada a me redescobrir também. Vasculho lá no fundo o que nunca havia sido apresentado nem para mim mesma e me refaço numa versão melhor. Meu amor, quero ver seu novo todo dia!

Jéssica Alves

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar &agraves mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor-
 No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Manuel Bandeira

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014


"Sou todo ouvidos" serve para mostrar o quanto se está pronto para ouvir tudinho, tim-tim por tim-tim, do que o outro vai dizer, sem deixar escapar uma palavra. Depois que se ouviu, volta-se ao estado inicial, porque o papel, que era só ouvir, foi cumprido. Às vezes, o que foi dito entra por um ouvido e sai pelo outro, como se diz por aí, mas isso não é problema, porque para sair pelo outro ouvido ele precisou entrar, então não há por que reclamar. "Sou todo coração" é que deveria virar expressão corrente. Pras pessoas mostrarem o quanto estão prontas para sentir tim-tim por tim-tim do que o outro está sentindo, sem deixar escapar uma dor, uma decepção que seja, qualquer fisgadinha no coração. Depois que se sente, não há como voltar ao estado inicial. Só temos um coração, aquela corrente de palavras que entram e saem pelos ouvidos não funcionam ali. Se entrou, não tem mais volta. O coração não vomita sentidos e sentimentos. E, para piorar - ou melhorar - a situação, como não vai caber tudo ali naquele espacinho, ele bombeia os sentimentos para todo o corpo. O que você sente é sentido pelo estômago, pernas, cérebro, braços, olhos, boca, rins... até pelo ouvido! O sentimento te abraça todo. Você vira outro e o outro também.

Jéssica Alves

terça-feira, 2 de dezembro de 2014



Liberdade é uma ave branca dentro de nós que quer se colorir com a cor do que a gente provou, viu, vestiu, com a cor dos lugares por onde a gente passou. Eu tentava pegar a liberdade, conquistar a liberdade, como se ela fosse um bicho de fora. Parei a tempo. Comecei uma excursão dentro da selva que existe em mim. Livre é quem descobre tudo o que tem por dentro.

Jéssica Alves

Os três tipos de Amor

Amor Purificador
Purifica a dor
Pura fica a dor

Amor Vivificador
Vivifica a dor
Viva fica a dor

Amor Justificador
Justifica a dor
Justa fica a dor


Jéssica Alves

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